Quarentena de quantos dias?

Na primeira semana foi aquela sensação de feriado prolongado. Não imaginávamos o que viria pela frente e achávamos que "logo" tudo voltaria ao normal. Foi a semana do pijama, de longas horas no sofá, de curtir a casa como se todos os dias fossem domingo. A real expressão do "não tínhamos noção" era praticada diariamente.

Não que estivéssemos alienados do mundo. Mas dentro daquele egoísmo natural do ser humano, quando assistíamos pela tv toda a situação da China lá em janeiro, a gente até que ficava impressionado, parecia algo surreal e por vezes um exagero. Mas logo virávamos as costas e nossa vida por aqui seguia igual.

Quando chegou a nossa vez, a sensação do primeiro instante foi incredulidade. Aquilo não poderia estar acontecendo aqui  conosco, bem debaixo dos nossos olhos.

As aulas do Pequeno não retornaram logo após o feriado de carnaval (iniciamos a quarentena no dia 24 de fevereiro). O marido passou a trabalhar desde casa. Tivemos que habilitar no que até então era o famoso "quarto da bagunça" um escritório meio improvisado. As aulas do meu curso também não retornaram. Não deu pra fazer a sobrancelha na sexta-feira e o café com a amiga ficaria para a semana seguinte.

E a semana seguinte chegou, a segunda semana da quarentena. Preciso reconhecer que até achava  engraçado ouvir o povo falar de quarentena que, em teoria, seria de 14 dias.

- "Pfuuu, quarentena de 14 dias ... não seriam 40?", insistia em questionar de maneira irônica.

Nessas alturas os supermercados, que haviam ficado quase vazios, já estavam repostos.

Começou a bater o cansaço de ficar em casa. Apesar de ter todo o tempo do mundo para fazer todas aquelas coisas que a gente não faz justamente por falta dele, desapareceu a vontade de ler, de assistir filmes. Limpar a casa todos os dias passou a ser quase como uma penitência.

São Pedro resolveu sacanear e passou a mandar dias lindos de quase primavera aqui pra gente. Algumas pessoas insistiam em sair pra rua e muitas vezes me perguntei porquê não saia de casa também. Mas os noticiários nos lembravam que justamente a região onde moramos (Lombardia) era a mais atingida,  onde os números de contágios se multiplicavam e o número de mortes começava a assustar.

Foi nessa semana que me inscrevi em alguns cursos online, pra fazer o tempo passar ou tentar aproveitá-lo da melhor maneira possível. A sensação de "estar perdendo tempo" era evidente.

Começou a me dar agonia usar pijama todo o dia ou no máximo a 'roupa velha de ficar por casa',  mas a verdade é que tinha zero vontade de me arrumar. Pra quê?

Marido já tinha um ritmo absurdo de trabalho, quase não nos cruzávamos por casa durante o dia. Pequeno passou a ter aulas online e os professores exageraram na quantidade de deveres.

Minha sobrancelha (que já estava grande desde a outra semana) começou a me irritar. Pra ajudar, o bigode também resolveu aparecer, se contrapondo aos fios de cabelos que iniciaram a cair mais do que o normal. O estresse começava a causar danos aparentes e eu era consciente disso.

No final dessa semana mais do que o cansaço físico, começou a bater o cansaço mental.

E então chegamos na terceira semana. Eu diria que foi a semana em que a ficha realmente caiu. Onde nos demos conta do real nível de problema que estávamos enfrentando. Já não era mais uma tragédia do outro continente vista desde a comodidade dos nossos sofás. O sofá seguia o mesmo, só que agora era tudo bem diante dos nossos olhos.

O vai e vem de ambulâncias passou a dar agonia. Os contágios saltaram absurdamente, o número de mortes já era impressionante e agora, além da nossa região, toda Itália estava em quarentena (a nossa já havia passado dos 14 dias). Aquelas mesmas pessoas que diziam que era para mantermos a calma, que aparentemente estavam atuando com cautela e que tinham controle da situação basicamente entoaram um "deu ruim" e mudaram de planos.

Foi nessa semana que saímos da nuvenzinha do egoísmo e nos demos conta de que não estávamos nem blindados e nem imunes e o que era  pior: os nossos também não. A imagem que chocou o mundo inteiro com os caminhões do exército levando corpos da cidade de Bergamo para serem cremados em outras cidades (porque já não tinha mais lugar pra tanto morto) estava acontecendo a 30 km da minha casa.

Descobrimos que aquela história de "grupo de risco" era balela. Descobrimos que jovens e pessoas sem outros tipos de patologias também estavam não somente ficando doentes mas, inclusive,  morrendo. E foi aí que me bateu o desespero.

E se acontecesse algo comigo? Ou com meu marido? Ou com nós dois? O que seria do meu filho? A família do meu marido, que mora a uns 700km daqui onde moramos também estava isolada. A minha família estava no Brasil. O que esse menino faria sozinho?

Foi nessa semana que vimos alguns depoimentos de médicos que basicamente diziam que estavam enfrentando, talvez, o pior momento profissional e pessoal de suas vidas. Que a morte por essa doença era a pior de todas. Primeiro porque ela é sofrida, porque falta ar e alguns até choravam enquanto lembravam dos olhares dos pacientes ao partirem. Segundo porque as vítimas partem em total solidão e mesmo depois de partir as famílias não tinham o direito do último adeus. Médicos com 25, 30 anos de experiência, que trataram SARS, ebola, abaixavam a cabeça resignados. Pois a questão não era somente ter leitos disponíveis para a população doente (isso tinha). A questão é que começavam a faltar bombas de oxigênio (no melhor dos casos) e respiradores mecânicos (no pior deles).

Foi nessa semana também que passei a ter dores no peito, passei a sentir uma agonia gigante que eu ainda nem consigo explicar. Fiz um esforço para tirar o pijama e colocar "roupa de sair" para ficar em casa. Fazia esse esforço também para aparentar calma, tranquilidade e normalidade todas as manhãs quando minha mãe me ligava. Aliás, levantar da cama todas as manhãs tinha um sentido justamente por isso: esperá-la para a video chamada sem o rosto estar inchado, respirar fundo um segundo antes de conectar, colocar um sorriso no rosto e tentar fazer de conta de que tudo estava bem.

Na quarta semana eu já não tinha mais azulejo para limpar nem gaveta para organizar. Também não tinha mais paciência para seguir com os cursos online. Descobri que ter todo o tempo do mundo não era assim tão bom. Começou a faltar imaginação para os menús diários.  Comecei a acumular louças na pia e  perder a noção do tempo sem saber direito que dia da semana era assustou um pouco.

Numa das noites dessa semana sonhei que estava caminhando na rua. Aqui no centro de Monza, fazendo o caminho de volta pra casa desde o pub que sempre vamos. A rua estava linda, cheia de flores e de gente caminhando pra lá e pra cá. Acordei com pena de mim. Eu há muito tempo havia perdido a liberdade de nem sequer chegar no portão do prédio.

Só por rebeldia, nesse dia coloquei roupa "de sair", me maquiei e passei perfume. Coloquei luvas e com toda a coragem do mundo desci para levar o lixo (as latas de lixo ficam nos fundos do prédio). Uma grande aventura depois de tanto tempo. Mais aventuroso foi entrar em casa de volta e me desinfetar todinha cumprindo com todos os protocolos que passaram a fazer parte da nossa rotina.

No final dessa semana percebi que já estávamos resilientes e com uma grande tristeza no coração admiti que essa já era a nossa rotina: já havíamos acostumado a ver o mundo desde a janela; pegar um solzinho na sacada era quase o melhor momento do dia; a sirene das ambulâncias seguiam nos deixando apreensivos mas muitas vezes não sabíamos se estávamos escutando realmente ou se já era um som presente e constante no nosso cérebro.

Os caminhões do exército seguiam em Bergamo. Os hospitais já estavam colapsados. Os números de doentes e mortos ainda aumentavam. Nessa semana as músicas nas sacadas e janelas vizinhas pararam. Não era só eu que me sentia exausta.




Os politicos 'baixaram as armas'. Deixaram para depois as divergências. Poucos, pouquíssimos são os que ainda tentam tirar proveito político de uma situação que é caótica e já não são bem vistos dentro dos seus próprios círculos. Demorou algum tempinho mas, creio, entraram em consonância e sabem da importância da consciência que estamos todos no mesmo barco. Não é momento para discutir quem tem razão. Eles sabem que atuaram tarde tentando salvar algo que para eles, naquele momento, era mais importante. Logo perceberam que o mais importante mesmo era outra coisa. Infelizmente para muita gente foi tarde demais.

Parecia mentira, mas era real: havíamos chegado na quinta semana. Foi nessa semana que algo mudou. A sensação de cansaço foi dando lugar à resiliência. Foi nessa semana que caí aos prantos e não foi ruim: eu precisava disso para aliviar o meu peito que insistia em doer quase todas as noites. Foi muita tensão e muita angústia acumulada. Muitas dúvidas e muitos medos. A sensação do "parece mentira" foi ultrapassada pela consciência de que era real.

Fiquei decepcionada com um monte de coisa que vi por aí. Enchi meu saco com tanta besteira que li no Facebook. Incrível como todo mundo deu pitaco de coisas absurdas e me senti impotente diante de tanta ignorância e desinformação disfarçada de algo verídico de procedências bastante duvidosas. Parecia que todo mundo tinha mensagem de fonte segura para encaminhar livremente, solução para todos os problemas, respostas e confirmações científicas enviadas pelo primo do parente do amigo do vizinho que estudava em Oxford e havia feito escala em Montreal. Santa paciência!

Me doeu muitas vezes ouvir e ler das pessoas que "era exagero" ou "não era pra tanto". Aquilo me doeu quase como uma ofensa pessoal. Uma sensação estranha de se sentir desamparado ou a certeza de que não havia ali o mínimo de consideração que fosse nem pela situação que estávamos vivendo, nem por mim ou minha família. Como se estivesse presa em casa por vontade própria. Com a vida inteira parada simplesmente "porque sim". Não conseguia mais rir de piadinhas sobre o tema. Pra mim não tinha absolutamente graça. Rir de algo que me fazia chorar durante a noite era meio incoerente.

Mas logo lembrei de quando eu tinha essa mesma percepção ignorante quando aconteceu tudo isso na China. Fiquei aliviada por não ter vomitado besteira por aí. Não conseguiria me perdoar por isso, sobretudo depois de ver de perto que o buraco era bem mais embaixo do que o meu próprio umbigo.

Olha que eu aguentei até campanha política no Brasil sem desfazer nenhuma amizade no Face :)  Mas se tem uma coisa positiva que esse momento de isolamento me deu foi justamente selecionar aquilo que me incomoda e machuca e simplesmente isolá-lo (nunca melhor dito) da minha vida. Não significa alienação mas simplesmente proteção. E, afinal de contas, eu decido o que me faz bem e o que não. A necessidade de limpeza era também interna e isso me levou à fazer uma limpa até mesmo na rede social que não tinha mais sentido pra mim.

Estou acabando a quinta semana em paz  com minha mente e com meu corpo: começamos a treinar em casa. No meio dessa turbulência toda fui inventar de subir na balança e descobri que além de tudo havia ganho 2 kgs de brinde. Enquanto vejo pessoas fazendo grandes planos para quando acabe a quarentena fico pensando e até sorrio com o meu humilde desejo: me contento com simplesmente voltar a rotina de fazer caminhadas e corridas no parque daqui de Monza.

Mesmo sem combinar estabeleci quase um pacto entre amigos com aqueles que entendiam pelo que estava passando: amigos daqui, da Espanha, de Portugal. Mensagens de ânimo, trocas de experiências, planos para o futuro, livros e revistas para ler, links de coisas legais pra ver e fazer na internet, receitas. Encontramos uma maneira bacana de nos aproximarmos e simplesmente dizermos "você não está sozinho".

Pequeno segue tendo aulas online. Na semana que vem terá até prova oral. O marido segue trabalhando num ritmo frenético mas acho que até já pegou carinho às quatro paredes do quarto que ele agora chama de "meu escritório" (que também é o quarto onde sigo acumulando pilhas e pilhas de roupa pra passar). Minha sobrancelha bem horrorosa porque fui inventar de mexer nela. O bigode foi pro espaço com algumas boas puxadas de pinça e o emocional segue oscilando à cada dia. Ah! Os cabelos seguem caindo ... e demais pro meu gosto. Mas, nem vou me estressar com o estresse. As prioridades nesse momento  são outras.

Não temos a menor ideia de quando a vida voltará ao "normal". Ontem tivemos o pior dia de todos com relação ao número de mortos (quase mil). A única coisa que sabemos é que o "normal" de antes não será o "normal" de depois.

Não sabemos quando o marido voltará a trabalhar no escritório.

Pequeno tem grandes chances de nem voltar às aulas nesse ano escolar (teoricamente aqui as aulas iriam até início de junho).  Ficou pra depois o início do curso de teatro do Pequeno. A aula de natação ficou pra depois. O passeio da escola também não teve e provavelmente a viagem com o grupo da igreja que seria em maio ficará para depois. 

Ficou pra depois iniciar a autoescola. Também não sei se meu curso recomeçará. Acredito que não. Pra depois ficou fazer o meu exame de controle da anemia severa que estou tratando. A infiltração no braço também vai ter que esperar. Transferir o título de eleitor pra cá também vai ficar pra depois. Assim como a minha viagem de férias para o Brasil (que seria agora em abril). Vai ficar pra depois dar um abraço na minha sogra. Os cafés com as amigas também, sabe-se lá quando serão. 

O ânimo para escrever aqui estava quase tão intenso quanto o ânimo para passar minha pilha de roupas (que está quase como o Everest). Mas hoje deu vontade. Até mesmo para deixar registrado aqui para o Pequeno esses dias que tem sido tão intensos e ao mesmo tempo tão entediantes. Sensações minhas que,  muitas vezes para preservá-lo o máximo que posso,  não compartilho com ele.

Lembram que eu ri da quarentena de 14 dias? Pois é ... 

É um pesadelo! E ao que tudo indica passarei meu aniversário em casa, numa quarentena que, parece, vai durar mais de 40 dias. Bem feito pra mim ... 

5 comentários:

  1. A situação é extraordinária, surreal, inimaginável, e qualquer outro adjetivo semelhante que se queira usar ou inventar.
    Vai passar, se Deus quiser, mas certamente não seremos os mesmos. A única coisa que sei é que a experiência nos amadurecerá de uma maneira que não gostaríamos de experimentar. Há coisas positivas, sem dúvidas, mas a carga emocional negativa exige uma estrutura forte, que eu não sei se tenho. E olha que tenho experiências de vida riquíssimas (mais de 30 anos de vida militar, Guerra de Angola no início dos anos 90, coordenar e executar a entrega de água no sertão nordestino no início dos anos 2000).
    Mas nada, absolutamente nada, por mais sofrido que tenha sido, se compara ao que estamos vivendo agora, quadro que tu expuseste com perfeição.
    E, como se não bastasse, um número enorme de brasileiros encara o problema com um viés ideológico, politizado e imbecil. Entre eles, pessoas com altos cargos na administração pública em todos os níveis. Eu não tenho nenhuma dúvida: os esforços deveriam ser concentrados num único propósito. Mas, infelizmente, não é o que vemos. E alguns imbecis tentam encontrar nas entrelinhas das notícias (sejam elas verdadeiras ou não) argumentos politizados e ideológicos para se afirmarem. Tem horas que sinto vergonha alheia.
    Vai passar, se Deus quiser, mas certamente não seremos os mesmos.
    Força, minha querida amiga, minha querida irmã, minha querida filha! Nós não estamos sozinhos nesta luta. Amo vocês!
    Beijos. Fiquem com Deus.

    Tio Beto_ 60 (Grupo de Risco! ;))

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    1. Meu querido primeiro irmão no grupo de risco :))
      Apesar de tantos parágrafos negativos no meu texto, existe muito de esperança e de positivo para o futuro. Realmente a única certeza que eu tenho de tudo isso é a de que as coisas não serão como antes, porque nós já não seremos os mesmos.
      Rezo de verdade para que Deus os proteja (e olha que ele vai ter trabalho, porque essa família é bem grande).
      Desde aquela minha primeira mensagem dizendo "gente, comprem álcool em gel e guardem" até a última foi com o intuito de protegê-los do furacão que estava nos devastando por aqui. Eu, a caçula, a raspa do tacho tentando me transformar em polvo e esticando no mínimo uns 50 tentáculos para proteger todo mundo :) Quem dera eu pudesse!
      É muita coisa triste nessa experiência. Mas se tem uma coisa que aprendi aqui e que transformou de vez minha relação com esta Nação, foi a de que "A UNIÃO FAZ A FORÇA".
      Beijos! Se cuidem! Fiquem com Deus.

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  2. Tati, que bom ler este depoimento, porque mostra o lado humano e sensível desta crise, mostra a passagem tão difícil deste tempo, suas fases, dificuldades, descobertas... As coisas aqui na Espanha também estão muito complicadas, mas não se compara ao que vocês estão passando. Eu sou umas das que pensava que era neura, que era um bobagem passageira, mea culpa. Já ri muito dos memes (e continuo, porque rir para mim é uma forma de extravasar o nervosismo, mas talvez não devesse). Também estou muito preocupada com o que nos espera. Triste, angustiada, quase sempre sem vontade de fazer nada... E só estamos na segunda semana. Torço para que tudo isso acabe logo e que vocês possam voltar a ter uma vida normal. Que alguma solução seja encontrada para que tanta gente não sofra e morra em condições tão tristes. Espero que você continue nos contando suas experiências, porque elas nos ajudam a entender e viver o que temos pela frente. Parabéns pela coragem de colocar tudo isso aqui, de uma forma tão sincera e sensível. Tudo vai ficar bem! Beijos, Anlene.

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    1. Anlene, que bom te ver por aqui :)
      Estamos com o coração duplamente partido por tudo o que está passando aí tb. Eu, particularmente, amo a Espanha e em especial Madrid. Precisamos ser fortes, positivos e confiar: tudo vai ficar bem sim!!!
      Beijos.

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    2. Oi Tati, venho sempre, mas é a primeira vez que comento. Tudo vai ficar bem! Beijos

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