Fome de saudade.

Eu já senti fome. Daquelas fomes de verdade, de doer o estômago. Uma única vez. Foi quando meu Pequeno nasceu. Minha doutora recomendou que ficasse de jejum desde às 20hs do dia 03 de setembro. A cesárea do Pequeno estava marcada para a manhã (não lembro a hora exata, mas era bem cedinho) do dia 04 de setembro. Por uma série de imprevistos e enrolações, Pequeno acabou nascendo às 15:55h do dia 04. E eu só fui liberada para comer na manhã do dia 05. Trinta e poucas horas sem comer, nadica de nada. Eu, de verdade, senti fome.

Eu senti vontade de comer. Logo, a vontade foi dando espaço para uma dorzinha incômoda no estômago. Eu enjoei de fome. Babei de fome lembrando dos sabores. Só pensava em comida. Tive desejos. Fiquei braba de fome e triste também.

Na manhã do dia 05 quando veio minha primeira refeição, o café da manhã, quase explodi de felicidade. Parecia um sonho! Uma miragem! E apesar do menu principal daquela pequena bandeja (que me pareceu um grande banquete) ser um jamón de york (uma espécie de presunto que eu sempre detestei), comi aquele treco como se fosse a melhor comida do mundo. Pra mim, naquele momento, realmente era. Mastiguei o presunto como quem mastiga borracha, meio sem jeito e meio sem vontade. Mas eu precisava comer. Acho que meu cérebro se encarregou de driblar parte do meu paladar e o comi todinho inclusive as gordurinhas que costumavam me dar náuseas.

Eu acostumei com a fome, a senti em várias etapas, mas me acostumei. Acostumei com a vontade, com a falta, com a dor que era física mas também psicológica.

Por que estou falando isso?

Porque o que estou sentindo agora me fez lembrar da mesma sensação  que senti há quase 14 anos: acostumar com um situação  e sensação ruins.

Hoje entramos pela milésima vez em zona rossa (zona vermelha). Pra quem não sabe - mas já escrevi por aqui em algum outro momento recente - aqui na Itália não temos zona preta. A pior delas é a vermelha. Aquela em que fecham quase todos os comércios (salvo os de gênero alimentício, farmácias, tabacarias, bancas de jornal e algumas outras atividades, todas com acesso restrito, poucas pessoas por vez e apenas uma por núcleo familiar). Aquela que nos permite sair de casa somente para o estritamente necessário e com a autocertificação no bolso (a gente precisa colocar dados pessoais e explicar para onde vamos e porque vamos. Se o polical que nos parar decidir que não era para estarmos na rua ou não se convencer com o motivo alegado, multa. Assim de simples). Eu e marido já fomos parados pela polícia um dia quando estávamos indo caminhar no parque. Dá um friozinho chato no estômago. Nao é uma sensação muito agradável.

Eu sinto fome de sair livre pela rua, de almoçar no meu restaurante preferido (eu não lembro quando foi a última vez) ou de conhecer um dos tantos restaurantes novos que estavam na minha lista. Sinto fome de passear de carro por aí, conhecer lugares novos e voltar nos que ganharam meu coração. Sinto desejo de ir ao cinema, teatro ou suar na academia. Sinto fome de ver minha sogra. De pegar um avião, encarar horas e horas dentro dele, de ter estresse em aeroportos com aquelas esperas infinitas. Dói meu estômago de vontade de abraçar meus pais. Faz mais de um ano que não vou a Milão ... e tá aqui do lado da minha casa. Faz mais de um ano que não pego um trem. Que não passo base no rosto. Faz mais de um ano que não cosigo planejar nada e que ainda espero reembolso da minha passagem de abril de 2020 que foi cancelada.

A nova zona rossa é o meu jamón de york: eu não gosto dela, na verdade, a detesto. Mas a estou mastigando, uma mastigação meio borrachosa. Uma falta de gosto, de sabor, de felicidade e de prazer. Mas a mastigo porque, afinal,  meu estômago vazio fez com que me acostumasse com essa sensação nada agradável mas que é a que tenho no momento. A engulo fria e meio sem vontade.

E assim como aquele jamón de york foi o melhor dos manjares naquele momento, eu aguento firme e forte, porque é preciso e porque é o que eu desejo: a maior das dores e vazios do meu estômago vai passar e talvez não seja do jeito que eu sonho, não seja da intensidade que eu desejo, com o contato físico que me faz falta, mas eu acredito que em breve vou poder matar a maior das minhas fomes. Aquela que tem gosto de saudade. E, esta sim, me nego a acostumar.

Parco di Monza



2 comentários:

  1. Querida Irmã!
    Sei exatamente o que estás sentindo, e estamos juntos na caminhada, logo nos encontraremos e iremos saldar todas as dívidas de reencontro.
    Força, foco e fé.
    Um beijo no coração de vocês!

    Renato Fraga
    OIM - OMB

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    Respostas
    1. Beijo, meu querido!
      Vai faltar bucho pra tanta fome que vamos matar! :)

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