Ela era azul, como sempre havia sonhado.
era mais ou menos assim |
A pegava, saía dando pequenas pedaladas nas britas do quintal. Abria o portão de ferro cinza chumbo e ultrapassava um limite imaginário de liberdade.
Uma vez fora, encarnava um papel: um piloto, esportista, aventureiro ou simplesmente motorista qualquer. Fazia de conta que o acelerador ficava no guidão e o impulsionava ficticiamente, enquanto colocava toda a força possível nos pés, para pedalar o mais veloz que podia.
Lembro que tinha uma amiga com uma bici que era rosa e branca. Do guidão saíam pompons rosas. Tinha cestinha Era horrorosa aquela bicicleta! Não corria leve como a minha. Primeiro porque era cheia de apetrechos; segundo, porque a menina vivia com medo de "estragá-la". Só gostava de competir com ela porque sempre perdia.
Dependendo do dia, imaginava obstáculos no meio do caminho. Uma pequena pedra se transformava na maior montanha já superada pelo homem. Por cada pessoa que passava, imaginava que era um adversário que ficava para trás.
Nos dias mais tranquilos, quando não estava com muita vontade de competição ou aventura, saía simplesmente para passear. Parava diante dos fios de luz imaginando que eram semáforos. Eu juro que via sinal vermelho e parava respeitando os sinais de trânsito como um bom condutor deve fazer. Ficava atenta aos sinais amarelos. E acelerava feliz da vida nos verdes.
Tudo isso acontecia enquanto fazia a "volta na quadra" de casa. Era o que, naqueles tempos, minha mãe me permitia. Confesso que, vez que outra, dava uma esticadinha maior até o quarteirão do supermercado (que era a quadra seguinte da minha). No início voltava pra casa com o coração acelerado, pensando que minha mãe poderia saber que havia superado a zona de limite.
Outras vezes dava voltas no campinho de futebol que ficava perto de casa. Mas, não sei porquê, lá não tinha muita graça. A quadra de casa era mais animada, cheia de obstáculos, de pessoas e muitos semáfor ... ops, fios.
Caí alguns tombos. Não lembro que fossem muitos, mas eram intensos. Daqueles de deixar joelho esfolado, cotovelo ralado e a bici arranhada. Já que era pra cair ... que fosse com emoção.
Mas o tombo mais feio que levei enquanto andava de bicicleta foi já grande, "uma mulher feita" - como diria minha mãe - num dia chuvoso quando voltava do trabalho. Havia desabado o mundo, daqueles temporais de deixar tudo alagado. Apesar de ser final de tarde, era inverno e já havia escurecido.
Resolvi encarar aquele aguaceiro. Era isso ou me atrasaria para a faculdade. Talvez fosse a pressa, a falta de opção ou, vai ver, ainda existia em mim um pouco daquela ciclista aventureira. Resolvi encarar as ruas alagadas. O trajeto já era bem conhecido e achei que não haveria problema.
Não pedalei por muito tempo. Logo caí num buraco desconhecido. Não tive tempo de reagir. Quando vi, estava batendo com a cabeça no chão molhado (e mesmo molhado o asfalto seguia duro). Lembro até hoje do barulho seco da batida lateral da minha testa. Na verdade, entre a testa e a orelha.
Tive a sensação de ficar um pouquinho desacordada e quando recobrei consciência, a primeira coisa que me veio em mente foi: "Que vergonha! Será que alguém viu?". Ninguém viu. Ao menos ninguém veio me ajudar.
Eu tive muitas bicicletas. Mas a mais inesquecível, da que guardo as maiores lembranças, é da azul.
E de tudo isso lembrei dia desses quando saí com Pequeno e sua bicicleta nova.
Há tempos vinha falando em ter uma bici. A última havia tido no Rio, mas há muito tempo. Nela aprendeu a "pedalar sem rodinhas" em plena Baía de Guanabara. Tem post sobre ela aqui, outro aqui também. Quando ficou pequena, a doamos. Acabamos não comprando outra. Era mais fácil alugar quando íamos no Aterro do Flamengo.
Num primeiro momento, Pequeno reconheceu sentir-se inseguro para andar de bicicleta.
- "Faz tanto tempo! Eu não sei se ainda sei ..."
- "Meu filho! Uma vez que se aprende a andar de bicicleta, não se esquece mais."
- "Ihhhh, mãe ... não sei. E se eu cair?"
- "Do chão tu não passa". Afirmei por experiência própria.
- "E se as pessoas rirem de mim?"
- "Daí tu vai e passa com a bici por cima delas."
Ele riu. Deve de ter pensado: "melhor não contrariá-la".
Conversei com marido e disse que tínhamos que comprar uma bici para o Pequeno. Sim ou Sim. Está crescendo, daqui a pouco está adolescente e daí sim essas chatices de vergonha ficam maiores ainda.
Compramos uma grande. Leia-se grande como 'dá para toda a família'. Sim. Eu tinha segundas intenções. Reconheço isso sem nenhum problema. Adoro pedalar! E no momento, comprar 3 bicicletas não era uma opção.
Sabe os genes daquela menininha-moleca meio maluquinha que ficava imaginando os semáforos nos fios de luz? Pois bem. Eles não foram transmitidos para o Pequeno.
Nossa Senhora da Precaução! Que menininho mais temeroso, cuidadoso, prudente e ... meio patetinha! (patetinha com todo o carinho, tá Pequeno?!)
Em um único dia ele conseguiu atropelar um senhor que estava parado na calçada. Ralou o joelho por culpa de uma pedra que estava mal colocada no meio do caminho (???). E mesmo depois de alguns dias de pedalada, segue em briga constante com os pedais da bicicleta. Quando a bici está parada e precisa movimentá-la (pra frente, pra trás, pra direita ou pra esquerda) movimenta a peso. As rodas, uma das maiores invenções do homem, parecem que para o Pequeno não fazem tanto sentido. E se ele tem duas opções de trajeto, pode ter certeza, optará sempre pela mais difícil e complicada.
No primeiro dia de bici ficou dando giros num local perto da loja de bici, de pouco movimento. Lugar ideal para readquirir confiança e "lembrar" de como se pedala: pouco movimento de carro e de pessoas.
No segundo dia, pediu que voltasse com ele lá.
- "Nada feito!".
- "Ahn?!"
Fomos para uma praça do centro de Monza, que fica aqui perto de casa. Ele precisava de mais movimento. Tipo video game: 'simbora pra uma fase mais difícil!'.
Boa parte do trajeto o menino foi empurrando a bicicleta. "Porque tem muita gente. Porque tem muito carro. Porque não me sinto seguro. Porque eu não sei se ..."
Quer saber? Peguei a bici e saí pedalando, com o banco baixo mesmo,
- "Mãe! Tu não vai ... ichhhh foi! Mãe! Espera! Mãe ... nossa, mãe! Tu é boa pedalando, hein?! Espera! Tá mãe! Agora deixa eu!"
Está com as pernas esfoladas, arranhadas, roxas, marcadas, ou qualquer outro sinônimo para horroroso. Tanto na parte da frente (culpa dos tombos) quanto na parte de trás (culpa dos pedais).
A questão dos pedais é muito particular: se o pedal direito não está estrategicamente colocado no ângulo por ele definido como justo, ele não é capaz de dar impulso de outro jeito. Óbvio que nunca o pedal está posicionado do jeito que ele quer, então, para ajeitá-lo, Pequeno empurra com as pernas. De uma maneira bastante estabanada que, creio, nem a NASA conseguiria explicar. Já tentei dizer, inclusive, dando o exemplo na prática, que ele pode começar a pedalar seja do lado direito que do esquerdo, que ele não precisa arrastar a perna no pedal, que por mais baixo que o pedal esteja ele pode pegar impulso da mesma maneira ... mas não tem jeito. Cada louco com sua mania!
Lógico que sei que ele precisa de tempo para readquirir confiança e experiência. Mas Pequeno é meio metódico, preciso e cauteloso para algumas coisas ... às vezes até demais ... e isso me causa urticária.
Dia desses fomos para o parque. Eu e o pai dele para corrermos/caminharmos e Pequeno com a bici para pedalar.
Chegamos no parque de Monza. Enorme. Gigante. Um dos maiores da Europa. E o menino veio perguntar por onde ele iria.
- "Go, Forrest! Go!".
Sempre brinco com ele assim.
- "Vai ao mundo, menino!"
Pois ele andava alguns metros e voltava. Ou, então, parava e ficava esperando por nós.
- "Nicola! Vai!", passei a responder meio sem paciência.
Não tinha jeito. É algo mais forte do que ele. Na única vez que foi um pouco mais à frente, caiu e ralou o joelho. Isso sim: segurou o choro.
No final, fiquei morrendo de inveja dele. Quisera eu que no meu tempo de pequena tivesse um parque enorme como esse para explorar.
Imagina ... ao invés de brita, correr no asfalto. Morrinhos de verdade para saltar. Ao invés dos fios, meus semáforos seriam as árvores. Aliás ... que nada ... tem semáforo no parque. Imagina ... um sonho!
Isso sim: não trocaria minha bici azul pela preta dele. Mas de jeito nenhum!
Ótimo texto, como todos! Deu até vontade de dar uma pedalada... rsrsrsrs... Minha primeira bicicleta era verde e branca. A segunda, de gente "grande", era vermelha. Não tinha altura ainda para a vermelha, mas era metida igual a uma pessoa que li agora há pouco, eu precisava subir no meio fio para alcançar o banco! E se caísse... ferrou! Precisava de outra calçada para recomeçar. Mas tem brincando uns bons 15 anos que não pedalo! Bons passeios! Beijo
ResponderExcluirOlha que umas boas pedaladas por Londres não estariam nada mal, hein?!
ResponderExcluir:)
Bjinhos!