Histórias que se repetem.

Não faz nem um mês que a criatura começou na escola. Caiu de paraquedas em meio ao calendário de avaliações. Não escapou de nenhuma. Isso sim, alguns professores tiveram em conta que o menino acabara de chegar e, apesar de um bom nível de italiano, vinha de um país estrangeiro, com outro idioma, outra rotina e acostumado a outros métodos de avaliações.

Aqui, ao contrário do Brasil, não tem teste e as avaliações são de dois tipos: escrita e oral. Óbvio que Pequeno nas avaliações orais se deu bem - não poderia ser diferente para um menino tagarela como ele. Ele tem o dom da oratória e sabe tirar proveito da "enrolation" ... nesse caso, "enrolazione" (não existe essa palavra em italiano, acabei de inventar, viu gente?!). Algumas notas satisfatórias, outras nem tanto ... mas tendo em conta de que o menino chegou quase 4 meses após o início das aulas ... até que ele se deu bem. Embora nossa briga seja a mesma de sempre: um pouco mais de esforço e atenção. Mas, enfim ... tudo faz parte do processo. Já esperávamos por isso.

O que não mudou em nada, comparado com sua rotina de estudos no Brasil, é o fato de que aqui também tem muitos deveres. E, pra ser bem sincera, acho que aqui ainda tem mais deveres do que no Brasil. O menino praticamente passa as tardes estudando. Um pouco por que é lento e disperso e não sabe se organizar com os estudos. Mas, por outro lado, tem dever que não acaba mais. Preciso reconhecer.

Eu e o pai dele temos tentado ajudar, na medida do possível. Porém, faço questão de que ele pegue as rédeas de suas responsabilidades. Se já "é grande" para ir sozinho para a escola, também precisar ser grande para dar conta do resto de suas responsabilidades escolares.

Enfim ...

Ontem, mais uma vez, chegou da escola cheio de coisas para estudar. Dentre os muitos deveres de matemática, geometria, inglês, etc, havia um dever de italiano em especial que estava tirando seu sossego.

Precisava decorar para o dia seguinte (ou seja, hoje) parte de um poema. Era curto. A princípio, olhando o livro de longe, achei que fosse exagero dele. Porém, quando fui ler o bendito poema, entendi o desespero da criatura. Era difícil pra caramba! Era difícil até para um italiano nascido, crescido e estudado aqui ... imagina para o meu italianinho fake.

«Cantami, o Diva, del pelide Achille

l'ira funesta che infiniti addusse 
lutti agli Achei, molte anzi tempo all'Orco
generose travolse alme d'eroi,
e di cani e d'augelli orrido pasto
lor salme abbandonò (così di Giove
l'alto consiglio s'adempìa), da quando
primamente disgiunse aspra contesa
il re de' prodi Atride e il divo Achille.»

(Proemio dell'Iliade nella traduzione di Vincenzo Monti)

Passou boa parte da tarde falando sozinho no quarto. Logo, me pediu ajuda e pesquisei na internet alguns vídeos, a fim de que pudesse ser um incentivo para o processo. Nada. A primeira parte decorou logo. Mas o resto ... nem com reza braba.

Para ajudar, a professora marcou no texto a nota que tirariam ... se decorar até tal parte tira 6; até tal parte 7; até tal parte 8; até tal parte 9. Se decorar tudo, claro, 10. E ele até o momento só poderia tirar 6. Desespero total!

Durante o jantar, conversando a respeito (sim, porque o assunto se estendeu) lembrei, então, que quando tinha mais ou menos a idade dele, tivemos que decorar um poema para um trabalho de escola. Me gabei dizendo que o meu poema era bem maior que o dele e que havia decorado de tal maneira que lembrava dos versos até  hoje. Pequeno, curioso, pediu que o declamasse. Assim que, em meio ao jantar, declamei para os Nicola's o Soneto de Fidelidade. "De tudo, ao meu amor serei atento ...". Declamei todinho (morrendo de medo de esquecer de alguma parte - já estava preparada para alguma "enrolazione"). Pequeno achou o máximo. E disse:

- "Nossa! É grande mesmo! Como é que tu ainda lembra?"

Perguntou, então, para o pai dele se alguma vez na escola teve que decorar algum poema. Claro que sim! Quem escapa dessa tortura?

Marido, então, declamou o seu. Pequeno talvez nem tenha notado, mas eu notei que teve sim um pouco de "enrolation" ... danadinho do papai!

Pequeno achou o máximo de novo.

Pronto. Foi a gota d'água para o menino se esforçar para decorar o seu poema. Se o pai e a mãe foram capazes e até hoje lembram, por que ele não seria? Recebeu os exemplos quase como um desafio: se eles podem, também posso.

Voltou para o quarto, dessa vez com o pai que o ajudou a entender melhor o sentido do poema. Minutos depois foi para o banho e, debaixo do chuveiro, super animado, seguiu declamando. Vez que outra o marido batia na porta para corrigir alguma pronúncia ou alertar de algum esquecimento.

Eu fui dormir e o menino seguiu no quarto, falando sozinho. 

Hoje pela manhã, quando fui acordá-lo para ir para a escola, tadinho, nem abriu direito os olhos e já começou a declamar os versos, ainda debaixo das cobertas. Tomando café, entre um gole e outro, repetia orgulhoso de si as frases difíceis já decoradas.

- "Eu já sei! Eu já sei!", repetia.

- "Fica tranquilo, filho! Vai dar tudo certo. Se esquecer alguma coisa ou outra não tem problema."

- "Não vou esquecer nada, eu já sei!".

Ao sair de casa, escutei que ele foi falando no elevador. Já o imaginei o caminho inteiro falando sozinho pela rua.

Judiaria! Saiu de casa com -2ºC, mas super empolgado. Fiquei espiando pela janela. Ele me acenou, como todos os dias, mandando beijinhos. E, enquanto meu menino ia desaparecendo na paisagem, declamei para mim:

"Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."
(Vinicius de Moraes)

P.S.: Pequeno voltou feliz e sorridente. Tirou 9. E, como ele mesmo disse: "Só não tirei dez porque enfiei um acento no lugar errado ..."

4 comentários:

  1. lindo!!!1 parabéns bibi tu és um genio muito orgulho pra nós

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  2. Respostas
    1. O potencial dele é grande, amiga ... o problema é que a preguiça é bem maior ... hehehehe
      Bjos nossos!

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