Em briga de marido e mulher ...

     Sábado demos uma voltinha aqui pela nossa cidade. Estava tendo um evento esportivo, bem conhecido, que nunca havíamos presenciado.

    A gente quase nunca sai por Villasanta, nossa cidade. Seguimos com o cordão umbilical em Monza (até porque é uma cidade grudadinha na outra). O lado negativo disso é que apesar de estar morando um pouco mais de dois anos aqui, não nos sentimos inseridos na cidade embora a gente já conheça algumas pessoas, tenhamos a nossa cafeteria preferida, o açougueiro, etc ... mas não sei explicar, uma sensação estranha de não fazer parte ( dia desses, conversando com minha vizinha que mora aqui há 4 décadas, ela disse sentir a mesma coisa ... vai entender .. fiquei até aliviada.).

    Enfim ... desses milagres da vida, saímos para dar uma volta eu, marido e (aqui está o milagre) Pequeno. É sempre cada vez mais difícil poder contar com o prazer da sua companhia.

    O evento era o Monza Power Run. Uma corrida beneficente, organizada por uma associação com a finalidade de arrecadar fundos  em prol da pesquisa e tratamento da leucemia. É um evento esportivo e divertido. Uma corrida de 6 ou 12 km com alguns obstáculos. O percurso é entre o Parque de Monza e a cidade de Villasanta.

    Caminhamos um pouco pela cidade, descobrindo os percursos e os obstáculos da corrida. Fomos até o local onde estava o ponto de chegada (ali havia um último obstáculo, um super tobogã que fiquei até com vontade de subir nele). 

   

     Estava estrategicamente colocado bem próximo de um bar onde resolvemos fazer um aperitivo (costume aqui  *dessas bandas  que eu amo!).


    Ficamos um tempinho por ali e logo quando chegou o primeiro competidor nos aproximamos mais para curtir a atmosfera. Achei muito legal e fiquei com vontade de participar (vontade esta que foi pro espaço quando logo depois vi os outros obstáculos. Cansei só de ficar olhando ...).

    Pequeno ficou um pouco conosco e logo foi pra casa (tomar banho, se arrumar para encontrar com os amigos).

    Eu e marido ficamos aproveitando o ambiente e descobrindo o que era a competição em si. Nos divertimos, demos boas risadas com as pessoas fantasiadas (tinha desde homem uva até Pamela Anderson). Fiquei com inveja da galera de mais idade super em forma conseguindo superar todas as provas.




    Até que decidimos voltar pra casa.

    Quando estávamos próximos da nossa casa, passando por um prédio ouvimos uns gritos, um homem que gritava muito forte, gritos de fúria, mas não conseguia entender muito bem. Nos aproximamos da galeria (a entrada do prédio fica nessa galeria) e percebemos um casal discutindo. O homem seguia gritando, de forma violenta. Discutiam em espanhol. 

    Percebi que ele deu um empurrão na mulher. Então eu parei. Disse pro marido: "eu não vou me mover daqui!".

    O homem estava de costas pra rua (para nossa direção), não viu que estávamos ali. A mulher sim percebeu. Ele seguia gritando, ela seguia se desviando, ele seguia impedindo a passagem dela. Quando o tom começou a ficar ainda mais agressivo, disse pro marido: "vamos lá!".

    Enquanto caminhava na direção deles, imaginava na minha cabeça oitocentas mil respostas que pudesse dar para aquele homem caso ele dissesse algo do tipo: "não te mete", "tá querendo o quê", "perdeu alguma coisa aqui". Mas ninguém falou nada. Nem ele, nem ela.

    Nos aproximamos,  o Nicola Sr. perguntou se estava tudo bem. Era óbvio que não estava tudo bem, mas como se inicia uma conversa numa situação deste tipo? O homem foi tentando se explicar em italiano então disse que ele poderia falar em espanhol, que nós entendiamos.

    Foi neste momento que me senti numa novela mexicana (apesar de eles serem do Peru).

    [leia em tom de sotaque castellano]

    - "Porque ella no quiere estar comigo", disse ele.

    - "Yo no te amo más!", respondeu ela

    - "Como no me amas? Si ayer estuvimos juntos ...", retrucou o violento.

    E antes que ele continuasse dando detalhes sentimentais e sexuais, disse que por favor, se ele poderia conversar de uma maneira mais tranquila com ela, sem gritos e gestos bruscos.

    Ele foi tentar argumentar mas levantou a voz novamente.

    - "Não grita, fala com calma. Agora sou eu quem está aqui mas você sabe que daqui a pouco pode ser a polícia ... as pessoas aqui estão ouvindo você gritar, assim como eu ouvi!".

    Ele baixou o tom.

    Pra tentar acalmar um pouco a situação perguntei de onde eles eram (foi aí que descobri que eram do Peru).

    Ele olhava para  a moça e dizia: "Jenny, você não pode fazer isso comigo!". E eu pensava cá com meus botões: "Ahhhh ela não só pode como deve, my friend ..."

    Ele parecia desesperado. Ela me pareceu bem apática, não demonstrava medo, apenas total indiferença.

    Em determinado momento, quando estávamos conversando com ele, o telefone dela tocou e, como se nada estivesse acontecendo, ela disse: "só um pouquinho que vou ali responder pra fulano." Eu fiquei meio sem entender. Por um momento até pensei que ela fosse aproveitar a oportunidade para sair correndo. Mas não. Ela voltou.

    Nicola Sr. foi conversando com ele, dando conselhos. E eu fiquei observando Jenny. Às vezes ela passava a mão no rosto, como quem diz: "tô morrendo de vergonha". Mas seguia ali. 

    Foi então que me aproximei ainda mais dela, olhei no fundo do olho e perguntei: "você está bem? Precisa de ajuda?".

    Ela respondeu  que estava bem, que não me preocupasse. Perguntei uma segunda vez e ela me respondeu ainda mais confiante: "Sí, sí, todo bien!".

    Disse pra ela: "então nós vamos embora".

    - "Sí, sí, no se preocupe, todo bien."

    Voltei pra perto do marido e disse: "vamos embora!".

    Antes de sair, disse pro  histérico violento: "Desculpe por termos nos intrometido na conversa de vocês, mas você estava gritando. Por favor, tentem conversar de uma maneira calma, sem gritos nem violência. Como eu te disse, agora fomos nós que paramos mas se você continuar assim - você sabe como as pessoas aqui são - daqui a pouco é a policia que estará aqui. E pra eles você terá que dar mais explicações. Conversem numa boa, por favor. Tá bom, Jenny? Estamos indo embora ...", quase querendo dizer se você quiser vem conosco ou nos diga para não irmos.

    Eu pensei em ligar para a polícia. Mas quando percebi que ele estava conversando conosco numa boa e se tratando de imigrantes, achei melhor não ligar. Vai saber ... não queria complicar ainda mais a situação para ambos. Tem muita gente aqui sem documentação, que vive ilegalmente. Não sei se era o caso deles mas, por via das dúvidas, e tendo a situação parcialmente acalmada, achei melhor não.

    Nada. Jenny quase que com uma cara de saco cheio de nós disse que estava tudo bem.

    Eu e marido saímos. E até onde nossos ouvidos conseguiam escutar, não  percebemos mais nenhum grito.

    Ficamos dialogando sobre ela ter seguido ali. Marido disse que teve a mesma sensação que eu, que quando ela foi responder no telefone achou que saísse correndo. Por que ela voltou? Seguíamos nos perguntando ...

    Conversamos sobre o risco que corremos. Não sabíamos de quem se tratava. E se ele tivesse uma arma? Uma faca? Eu estava preparada para desviar, para sair correndo,  gritar, pedir ajuda, responder mal ou até mesmo enchê-lo de porrada (eu sei que violência não se revida com violência, mas eu sou ariana!), mas não. Conseguimos, felizmente, conversar numa boa.

    Eu não poderia ter ficado indiferente aquela situação tão brusca que tava ali, bem na minha frente. Não teria como seguir em direção à casa e deixar aquele homem gritando daquele jeito e empurrando aquela mulher.

    Ele me pareceu estar com uma dor de cotovelo daquelas. Jenny não queria mais nada com ele (ainda bem!). Mas Jenny me passou uma sensação estranha de indiferença que me deixou incomodada. Não indiferença com relação à ele, mas indiferença com relação aquela situação em si. 

    Talvez porque este tipo de comportamento fosse "normal" entre eles (isso é conclusão da minha cabeça). Não sei. Não consigo me explicar como alguém pode ser impassivo diante de tal situação.

    Ninguém - NINGUÉM - deve ser tratado assim, aos berros, em plena rua, com empurrões e ofensas. Amor não causa constrangimento, amor não fere fisicamente, nem verbalmente e muito menos psicologicamente. Quem ama não maltrata.

    Assistimos diariamente notícias (infelizmente aqui, no Brasil e no mundo em geral) de mulheres vítimas de violência doméstica. Assassinadas pelas mãos de alguém que dizia amar ...

    Amor não é posse. Ninguém pertence à ninguém. Ninguém manda em você, na sua maneira de ser, na sua maneira de se vestir, de se comportar, o que fazer ... Ninguém, além de você.

    Será que é tão complicado entender que na primeira tentativa de controle ou de violência, você deve sair fora daquele ambiente, daquela relação?! Por que tem gente que se acostuma a viver uma vida à dois falida?

    Sua vida não depende do outro. Ninguém morre de amor porque foi deixado, porque um relacionamento terminou. Não se morre disso.  O amor não machuca. De amor não se morre.

    Mas de violência sim se  morre ...

    Uma pesquisa apontou que no Brasil, no ano passado, à cada 24 horas 13 mulheres sofreram violência doméstica (dados aqui). 

    Na Itália em torno de 100-120 mulheres são mortas por ano. Essa morte tem nome: feminicídio. Só  neste ano, na data de hoje, o número de vítimas é de 31 mulheres. (mais dados aqui).

    Eu não sei se deveria ter parado ali. É complicado a gente se intrometer em algo tão íntimo como pode ser a vida à dois. Eu sei dos riscos que corremos. Eu não sei se estivesse sozinha, sem a companhia do Nicola Sr.,  se teria tido coragem de parar e ir até eles. Mas a única coisa que eu sei é que não quero passar por essa vida sendo indiferente ...

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Em caso de violência doméstica  ligar 180

In caso di violenza domestica puoi chiamare il 1522

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* dessas bandasexpresão gaúcha (da região do Rio Grande do Sul, sul do Brasil) que significa dos lados de cá, dessa região, desse lugar... expressão informal que significa direção/lugar.

Um comentário:

  1. Que história intrigante 🤔 será que vai ter mais gente curiosa para saber se a moça deixou o valentão berrante …. Eliane.

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