O irmão do coração.

     - "Quem é aquele ali?", perguntou minha coleguinha da escola (eu deveria estar no 1° ou 2° ano do Fundamental).

    - "Ele é meu irmão."

    Ela e os outros coleguinhas que estavam perto cairam na gargalhada. Eu fiquei sem entender muito bem o motivo de toda aquela graça. Até que minha colega, num tom de deboche que bem lembro dele até hoje (de tanta raiva que me deu), me disse:

    - "É impossível, né?! Ele não pode ser teu irmão. Ele é preto."

    Aquela frase - e talvez mais pela maneira como foi dita - entrou doendo no meu coração. Doeu de verdade, tanto que fiquei com lágrimas nos olhos. Como assim "ele não podia" ser meu irmão se ele era meu irmão?

  Pelé (apelido carinhoso) sempre foi meu irmão, desde que me entendo por gente. Aliás, durante muito tempo, ele foi muito mais irmão do que meus irmãos de sangue: todos saíram cedo de casa, para trabalhar, estudar. Depois casaram, foram pra suas casas, constituíram família, etc. Ele não, ele ficou. Ficou com meus pais e comigo, a irmã pirralha caçula.

Primos que aparecem na foto: perdoem-me pelos rostos ocultos 
Minha irmã Rosangela, meu irmão Renato comigo bebê em braços e o meu irmão Pelé

    Não tinha como imaginar a minha vida - sobretudo a fase da infância - sem a presença dele porque ele sempre esteve presente.

    Pelé é o meu irmão, não de sangue, mas de coração.

    Não teve uma adoção legal e oficial por parte dos meus pais mas foi uma adoção de coração. E foi ele quem nos adotou.

    Ele era amigo do meu irmão. Era início da adolescência deles.  Pelé passou a frequentar a nossa casa de vez em quando. Logo passou a frequentar a casa de uma maneira mais rotineira e intensa: a mãe dele, mãe solo, trabalhava duro e trabalhava muito para levar o sustento pra casa. Saía cedo e voltava tarde da noite.

    Logo Pelé passou a dormir lá em casa, com certa frequência. Até que chegou o dia em que a mãe dele foi conversar com meu pai: ela agradeceu pelo cuidado que meus pais tinham com ele e visto que ele adorava a nossa família e que aquele ambiente era bem melhor pra ele do que ficar o dia inteiro na rua, perguntou se ele podia ficar mais vezes por lá. E assim foi ... ele foi ficando, ficando, ficando ... e ficou. Até mesmo quando todos os meus irmãos já tinham ido embora de casa. 

    A casa dele oficial era a nossa mas visitava a mãe com bastante frequência (morávamos perto).

    Pelé me mimou, tanto que me estragou. Me cuidava com zelo, com carinho e com amor. Me dava as melhores das guloseimas, os chocolates mais saborosos, me dava mesada, presentes. Vez que outra tentava fazer papel de brabo mas o coração mole dele não resistia muito tempo.

   - "Toma jeito, Chatiana!", me dizia de vez em quando.

    Mas o apelido que mais marcou foi o de "Pintorzinho de Rodapé". Os anos passaram e ele seguiu me chamando assim, mesmo depois de "burra velha" e inclusive mesmo depois de ficar mais alta do que ele.

    Ele era uma espécie de guarda-costas. Quando pequena controlava onde e com quem brincava. Vez que outra me dava broncas. Lembro do dia que me viu andando de bicicleta com saia. Minha Nossa Senhora dos Irmãos Raivosos! Nunca vi o Pelé tão brabo.

    - "Vai já pra dentro de casa colocar uma bermuda. Aonde já se viu ..."

    Depois passou a ser um ponto de referência e confiança para os pais dos amigos. Na pré adolescência, início de festinhas. Só podiamos ir se o Pelé fosse também. E ele ia, com toda a calma e tranquilidade, vez que outra fazia cara de brabo mas todo mundo já sabia que no fundo ele era uma manteiga derretida. No meio de toda a nossa bagunça ele suspirava e sacudia a cabeça como que dizendo: "onde fui me meter ...".

    Lembro um bailinho que teve no salão de festas da igreja. Estava dançando uma música lenta com um menino bem bonitinho. De repente olho pro lado: lá estava o Pelé, de canto de olho, me fazendo sinal de que estava na hora de ir embora.

    - "Tava de olho, hein guria?!", disse ele em tom sério.

    Logo nos mudamos de Porto Alegre para Osório. Ele poderia ter ficado. Já era bem adulto, tinha um trabalho, poderia pensar em construir sua vida. Mas não. Ele escolheu seguir conosco.

meus 15 anos

minha formatura

    Acontece que ele trazia consigo toda uma bagagem emocional que nunca cheguei a conversar com ele (mas que com o passar dos anos fui entendendo). Todas as faltas, as carências (emocionais, afetivas,  sentimentais) pouco a pouco foram cobrando espaço na vida do meu irmão.

    Ele fez escolhas não muito certas, escolheu o álcool como refúgio para suas dores, passou a ser irresponsável no trabalho, até que um dia foi embora. Voltou pra casa materna, de onde na verdade - acho -  ele nunca havia partido.

    Continuou mantendo contato com minha família, mas não era mais com a mesma frequência de sempre.

    Quando ligava dizia sempre: "Sexta-feira eu vou aí!". Mas chegavam as sextas e ele nunca aparecia.

    Depois eu fui embora e perdemos mais ainda o contato. Nos reencontramos algumas vezes mas bem menos do que gostaria. 

    Ele chegou a conhecer meus Nicola's. O Nick Jr. acho que o viu umas duas vezes somente.


    Há alguns anos estava com a saúde debilitada, bem debilitada. Mantinha contato telefônico com minha mãe (quem ele sempre chamou de mãe) e um contato mais próximo com meu sobrinho Nando, que nessas últimas fases de internações e doenças esteve colaborando como pode, ajudando e estando presente.

    Ontem minha amiga querida de infância me deu a triste notícia de que Pelé havia falecido. Partiu. Se foi. Descansou.

    Ninguém na minha família sabia do ocorrido. Fui a primeira a difundir a triste notícia. Não quis ser a encarregada de avisar minha mãe. Pedi para que alguém fosse lá falar pra ela em presença. Felizmente minha (nossa) mãe chegou em tempo de se despedir do seu filho do coração.

    Fiquei com uma dor profunda na minha alma. Pela notícia triste, pela distância que tivemos, pelas escolhas que ele fez na vida ... por como tudo poderia ter sido tão diferente.

    Espero que meu pai o tenha recebido. Provavelmente vai dar algum que outro puxão de orelha ... mas espero que o tenha recebido de braços abertos, assim como o recebeu quando ainda era um garoto.

    Se foi o Pelé, meu irmão. Porque sim, ele foi,  é  e sempre será meu irmão. Como respondi pra minha coleguinha aquela vez em prantos:

    - "Ele é meu irmão sim! Só que a diferença dos outros, ele nasceu de noite ..."




7 comentários:

  1. Uma tristeza, lembro do meu Tio Pelé sempre que iamos de férias para a vó, ele sembre brincava, dava guloseimas e também os puxões de orelha quando necessários, mas sempre muito tranquilo com as sobrinhas pirralhas de longe!! Fica bem Tati, espero que tenhas muita força e desejo todo o conforto que necessitar para lidar com a perda. Ele descansou e com a certeza de que teve uma família enorme, varulhenta e que o amava muito! 💙🙏🏻 Beijão da sobrinha-irmã mais linda 🥰😘 Laura

    ResponderExcluir
  2. Corrigindo: "barulhenta"

    ResponderExcluir
  3. Que post emocionante! E me deu um misto de sentimentos mas o principal foi sentir muito pela nossa perda, e não só da partida do querido tio Pelé (porque era meu tio sim), mas pela perda do nosso contato, pela sua perda de caminho, por tantos momentos que ele perdeu de estar juntos conosco! Suas escolhas teve consequências, que resultaram na nossa perda de convivência! E veio um alívio de saber que acabou seu sofrimento, não sei o motivo da partida mas sei que teve uma vida sofrida… e hoje ao ler teu post chorei, de emoção e saudade das tardes comendo doce assistindo Chaves com meu tio pele!

    Carinhosamente, sobrinha Jé 🤍

    ResponderExcluir
  4. Falaste tudo minha irmã!
    Rogo á Deus que o receba e o conforte, pois Ele merece.
    Renato Fraga
    OIM - OMB

    ResponderExcluir
  5. Meus sinceros sentimentos, Bella !
    As perdas sempre sai difíceis, sobretudo quando se vai alguém que marcou nossas vidas 🥹
    Tudo é fruto das escolhas que fazemos nessa vida, todavia sempre fica aquela sensação do "poderia ter sido diferente".
    Que seu irmão que "nasceu de noite" e que por muitas vezes foi luz na sua vida, descanse em paz! Ele vai ter longas conversas com seu pai, agora.
    Bacciones. Tudo de maravilhoso com seus Nicolas🫶🏼🫶🏼🫶🏼

    ResponderExcluir
  6. Ah, o Pelé! O cara mais gente boa da vida! Lembro com carinho de todas as vezes em que assisti Mazzaropi com ele, pois ele adorava e achava que eu iria gostar também. E dávamos risadas juntos. Lembro de todas as vezes que ele vinha com um sorrisão no rosto e me enchia de guloseimas. O Pelé esteve presente em todas as minhas férias de infância. Nunca questionei o fato de ele ser irmão de vocês, e me lembro com carinho de quando, na maior inocência do mundo, ainda criança, perguntei para ele por que ele tinha pele de chocolate. Ele me respondeu que o mundo seria muito chato se fôssemos todos iguais. Não sei porque isso me marcou, eu era muito pequena, mas nunca esqueci. E sim, ele tinha razão. O mundo seria mesmo muito chato. Que ele esteja em paz agora! E que meu papis, tu e meus tios, fiquem bem após essa perda. Perder um irmão deve ser terrível!
    Beijos, minha xexelenta!
    Tinhamul! 💙

    ResponderExcluir
  7. Tati querida, não queremos perder quem amamos, e realmente ele era um irmão e se sentia amado pode ter certeza, agora está nos braços de Deus , olhando por todos nós, pois amava essa família. Fica bem, ele está bem, pode confiar .

    ResponderExcluir

Deixa um recadinho pra gente aqui, vai!

O irmão do coração.

      - " Quem é aquele ali ?", perguntou minha coleguinha da escola (eu deveria estar no 1° ou 2° ano do Fundamental).     - ...