A Senha Infinita.

    Viver na Itália é uma grande experiência. Na verdade, conviver com italianos é uma grande experiência.

    Não me refiro as belezas históricas e paisagísticas desse lindo país, sua gastronomia, geografia peculiar.

    Me refiro à vivência diária, convivência com os italianos e seus caráteres, gênios e "jeitinhos" bem particulares.

    Semana passada precisava passar na livraria para retirar o último livro escolar do Pequeno. De uma lista de muitos livros para o novo ano letivo que iniciou dia 12 de setembro, ficou pendente apenas um que encomendamos e alguns dias antes recebemos o aviso de que estava pronto para ser retirado.

    Marido precisava cortar o cabelo e então, na minha santa ingenuidade, programei o seguinte: iríamos no final da tarde, ele me deixaria na livraria (eu sabia que teria que esperar um pouco porque sempre tem fila), ele iria no cabeleireiro (que era ali próximo, no antigo bairro em que morávamos) e depois daríamos uma passeadinha por aí, quem sabe um aperitivinho. Sim! Fui cheia de segundas intenções.

    Marido me deixou na livraria que, como suspeitava, havia uma pequena fila externa de pessoas esperando por atendimento,  e foi para o cabeleireiro.

    Peguei meu papelzinho da senha de atendimento (porque o caos é organizado) e fiquei esperando.


a senha que estavam atendendo quando cheguei


    Mandei mensagem para o marido: "acho que vai demorar. Sou a senha numero 26." Ele respondeu que também estava esperando no cabeleireiro.

    Passaram-se 30 minutos e haviam atendido apenas duas pessoas. Senha 14. Tentei ser positiva e pensar que agora "" faltavam 12.

    Comecei a notar um certo desconforto entre meus companheiros de fila, sobretudo naqueles que já estavam ali antes de mim.

    Uma senhora que estava com uma bebezinha em um carrinho começou a dar voltas no quarteirão para distrair a bebê que havia começado a chorar. Um senhor que estava na minha frente desistiu e foi embora. Uma mãe que discutia com o filho (que estava reclamando da demora) e um grupinho de 3 senhoras que conversavam sobre escola e professores passou a observar melhor o que se passava dentro da livraria (porque estávamos do lado de fora, na calçada mesmo já que o espaço interno da livraria é limitado e não acomodava tanta gente assim).

    Uma delas percebeu, então, que havia apenas uma atendente para os livros reservados (porque a livraria é organizada por departamentos: uma senha e uma fila para comprar livros, outra senha e outra fila para vender livros, em outra parte outra senha e outra fila para retirar livros ... e, no final, uma última fila para pagamentos).  Já falei aí acima, né? O caos é organizado. Então perceberam (percebemos) que esta mesma pessoa também atendia a parte de papelaria e para papelaria não precisava de senha, você chegava e era atendido. Eu juro que visualizei sangue nos olhos da mulher quando ela se deu conta disso.

    - "O quê?! Ah não ..."

    Arregaçou as mangas e entrou livraria adentro, pronta para o combate.

    Com razão ela reclamou da falta de organização e logística do pessoal da livraria. Afinal de contas, todas aquelas 30 pessoas que estavam ali na fila nada mais queriam do que apenas pegar os livros já reservados e ponto final. Por outra parte a menina não tinha culpa da falta de pessoal. Na verdade teria que fazer uma queixa para o responsável pela livraria ... mas ... daí o caos já estava generalizado.

     Um reclama daqui, outro reclama dali. Eu me limitei a dizer que a pobre da menina não tinha culpa. O outro começou a bufar e fazer cara feia pra menina e para todas as pessoas que entravam para comprar material de papelaria, a outra reclamou  que fazia mais de uma hora que estava ali e que precisava pegar o trem pra voltar pra casa, outra que gritava que a Itália era uma merda (literalmente ela gritou isso) que qualquer coisa que uma pessoa tem que fazer precisa sempre se estressar porque as coisas não funcionam e a senhora com a bebê que seguia dando voltas na quadra porque a bebezinha gritava quando parava o carrinho na frente da livraria. Era a bebezinha e os grandões, todos estressados berrando.

    Quando percebi que meus planos de aperitivo estavam indo por água abaixo, comecei a ficar nervosa também. Brincadeirinha ... mas enviei uma mensagem para o marido: "Ainda aqui. Estão atendendo o número 17". Marido se limitou a responder um "putz". Bem motivante ele ...  eu tentando manter a vibe positiva: "faltam só 9".

    Demorou, demorou muito para os numerozinhos subirem. Naquele ponto, cada desistência era celebrada como uma vitória na loteria. Externamente a gente fazia cara de resiliência, olhinho de 'putz, coitadinho, não aguentou a pressão da espera'. Enquanto que internamente a gente celebrava e pensava 'felizmente, menos um ...'. Caos. Lei da selva. Eu já tinha perdido meu aperitivo mesmo ... só saía dali com o livro debaixo do braço. Livro de Arte. Mentalizei um Capitão Nascimento gritando no meu ouvido: "Pede pra sair, pede pra sair!". Desistir que nada! Só troquei a cruzada de perna (porque o pé já estava adormecendo), agarrei a bolsa firme, dei um apertão no papelzinho da senha e disse: "Tatiana, tu só sai daqui com esse livro debaixo do braço!".

    Pi-pi  (barulhinho do painel das senhas). Número 20. Ufa! Havia entrado na minha dezena. Enquanto isso pessoas iam chegando e já estava lá pela senha quarenta e poucos. Nós que já estávamos ali desde uma vida, nos olhávamos com cumplicidade e pelo olhar nos comunicávamos: "Tu conta ou eu conto?".

    Nesse meio tempo marido mandou mensagem dizendo que havia terminado de cortar o cabelo.

    Finalmente chamaram o número da senhora com o bebê. A mulher, no desespero de ser atendida, deixou o carrinho do lado de fora com a filha mais velha (que deveria ter uns 8/9 anos) e a bebê ficou no carrinho. Porém, quando ela percebeu que a mãe estava entrando na livraria sem ela, desatou num berreiro que deu até medo. Aquela expressão que sempre ouvi da minha mãe "chorou até se finar". Pois é, a bebezinha foi ficando roxa, choro trancado, testa enrugada e olhar de desespero. Ai partiu aquela reciprocidade entre mães. Sem combinar mas instintivamente, uma gritou pra atendente: "espera aí pra atender ela mas não chama outro número!", outra foi consolar a bebê e eu disse para mãe: "pega ela no colo e deixa o carrinho aqui fora que eu cuido".  O famoso caos organizado. Automaticamente a bebezinha parou de chorar. Ufa!

    Neste mesmo momento uma outra funcionária finalmente apareceu para ajudar a pobre da menina que estava tentando dar conta de tudo ao mesmo tempo. Então as coisas começaram a agilizar. Logo chamaram o  número da senhora que precisava pegar o trem.

    Marido chegou e chamaram o número 24. 

    A mãe com a bebezinha saiu e agradeceu por ter ficado tomando conta do carrinho. A outra senhora do trem saiu com cara de alivio e me deu "tchau".

    Marido me olhou com cara de "tu conhece elas?". Me limitei a dizer: "depois eu te conto ...".

    O número 25 havia desistido e logo chamaram a minha senha. Quase chorei! Uma vitória!

    Você deve estar se perguntando: mas o que tem a ver tudo isso com o início lá do post sobre o gênio e caráter dos italianos?  Tudo! Naquela fila teve desorganização, estresse, tom de voz alto, gestos (muitos gestos), caos, tumulto, reciprocidade, afinidade, ajuda, empatia e ironia.

    Lá sei eu quanto tempo depois saí da livraria em direção ao carro, pra voltar pra casa (sem meu aperitivo), com um livro de Arte debaixo do braço e uma história pra contar aqui no blog :)

   Ah, Itália ...  quanto ti amo!

2 comentários:

  1. Aaaaaah!!! Esse caos na Italia é uma delícia! Parece filme! Hauahauahauhauah… o povo italiano é único! Aqui na Australia não tem gente suficiente para fazer fila nos lugares! Hauahuahauah… brincadeira! Bom saber que deu certo o livro do meu afilhado. Espero que não seja de Latim ou de Grego, se não já vem com essa energia do caos logo no início da matéria, aí já viu, né?! 🫣
    Beijos para vocês da dinda mais legal que o Nicolinha tem!
    Saudade!

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  2. Por aqui, Sextou, cheguei cansada do dia estressante e fui abrir uma geladinha com umas bruschetas, uns queijos e presunto parma heheh tudo bem light. Só queria um motivo para dar uma relaxada. Nesses momentosde solitude, já que o marido queria ir comer sushi e eu não ahahahah para me alimentar vdebcoisas que me aqueçam a alma. Vi o papo teu e da Carolzinha lá no Instagram vê corri para ler o episódio que naonpudenler durante a semana. 😍😍😍😍 Ahhh como eu amo tudo isso. Você tem o dom das narrativas perfeitas, porque eu literalmente viajo! Auxiliada pela imagem postada, ficou bem fácil montar o cenário ahahahaha incrível, como visualizo as cenas a medida que leio. 😍😍😍😍 Amooo Io te credo! Como não amar a Itália e seu povo tão característico?
    Bacciones Bella amica. Tudo de melhor junto aos seus Nicolas. Nicolinha merece o sacrifício. Quero post do aperitivo. Leva ela, Nicolão 🤣🤣🤣🙌❤️❤️❤️
    Preciso assinar?
    Rose Mazza+hoje a Mantequilla não né atacou, ufa )

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